Ter o nome social reconhecido e respeitado é o desejo de centenas pessoas que não se reconhecem no próprio corpo nem no registro civil. Mesmo após sua morte, a travesti Agatha Lios deixa esse legado. O inquérito que apura a morte dela traz impresso na capa o seu nome social e não o de registro. É a primeira vez que isso acontece no Distrito Federal, e o mérito é da Decrin.
Agatha, 26 anos, foi assassinada a facadas na tarde de 26 de janeiro, entre Taguatinga e Samambaia. A decisão dos investigadores de usar Agatha em vez de o nome impresso nos documentos é carregada de significados e só tem a dimensão disso quem vive uma realidade marcada por episódios de desrespeito e preconceito. “É muito importante que isso esteja acontecendo. É um avanço enorme. Ninguém gosta de ter o nome escrito errado ou ser chamado por outro nome que não o seu”, avalia Welton Trindade, integrante da Associação da Parada do Orgulho LGBTS de Brasília.
Humanizado
A delegada Gláucia Cristina da Silva, titular da Decrin, conta que a Polícia Civil faz estudos técnicos para começar a emitir a carteira de identidade social. Para Welton, a especializada é a certeza de atendimento humanizado. “Pelo Brasil, são raros os casos de delegacias como a Decrin, mas também são um risco. O agente de outras unidades não pode se sentir desresponsabilizado de atender bem e com respeito às pessoas LGBTS”, alerta.
Prisões e flagrantes no combate à intolerância
Para o estudante de gastronomia Demétrio César Berte, 37 anos, o preparo de uma salada vai além de cortar e colocar legumes e folhas no recipiente. Ornamentar faz parte do processo. Mas, na semana passada, Demétrio, conhecido como Pai César de Oxum, foi proibido pela gerente da empresa onde trabalha de enfeitar os pratos que prepara, pois, parecia “oferenda para Iemanjá, macumba e feitiçaria”. As palavras teriam sido ditas em frente a outros funcionários e seria apenas mais um episódio do que ele classifica como perseguição religiosa.
Acompanhado de um advogado, Pai César de Oxum registrou ocorrência na Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual, ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin). Segundo ele, ficou claro que as dificuldades enfrentadas em serviço nos últimos meses têm como causa o preconceito religioso. “Já estavam rolando boatos, inclusive nas outras lojas, de que eu estava fazendo macumba dentro da cozinha, que ficava rezando para Iemanjá. Eu frequento um centro onde rezo e faço os rituais da minha religião. Eu não preciso fazer isso no meu ambiente de trabalho”, desabafa.
Criada há um ano, a Decrin registrou 163 ocorrências e recebeu 278 denúncias. Dos 89 inquéritos abertos, a unidade da Polícia Civil do DF concluiu 25 e prendeu cinco pessoas. Elas foram denunciadas à Justiça. O caso do Pai César de Oxum é investigado pela especializada desde sexta-feira. A advogada da empresa para a qual ele trabalha, Cláudia Paiva Bernardes, defendeu que não há intolerância religiosa no grupo, com unidades em Brasília e em Goiânia. “Eu mesma sou da umbanda e trabalho aqui há mais de 10 anos. Também conversamos com a gerente, e ela nega que tenha tido qualquer ato discriminatório. Só pediu para ele tirar o cavanhaque, atendendo as exigências de normas sanitárias para quem manipula alimentos”, disse. Cláudia acrescentou que a firma proibiu a ornamentação das saladas “porque isso agrega valor ao prato, e valor é custo”.
Cadeia
Um dos detidos pela Decrin até agora é uma mulher acusada de racismo. O crime aconteceu em um supermercado do SIA e envolveu duas clientes. Em uma das cenas flagradas pelo circuito interno de tevê, a agressora chega a cuspir no chão, próximo à vítima, numa demonstração de repulsa pelo fato de ela ser negra. Ao ser encaminhada para a delegacia, ficou cara a cara com uma delegada negra. “A todo momento, ela tentava tocar no braço da delegada, que pediu a ela para não fazer aquilo. A acusada reagiu: ‘Você acha que quero me sujar tocando em você?’. O nosso objetivo não é penalizar as pessoas. É cessar as agressões. Mas, se para o ato delas existe uma pena, aí é outra coisa, e elas vão responder pelo que fizeram”, relata a delegada Gláucia Cristina da Silva, titular da Decrin.
O preconceito e a discriminação são atos tão perversos que silenciam boa parte das vítimas, levando-as a aceitarem os apelidos da infância na vida adulta às custas de muito sofrimento. A crueldade chega a tal ponto, que leva homens e mulheres a xingar, agredir fisicamente, incendiar e até matar seu semelhante por causa da diferença. “Os ataques (religiosos) ocorrem todos os dias, todos os meses, todos os anos. O que aconteceu é que houve maior cobertura da mídia”, diz o presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, Rafael Bernardes.
A criação da unidade especializada no combate a crimes de intolerância religiosa é considerada uma conquista e deu resposta a episódios de violência contra frequentadores de terreiros, de centros espíritas e de igrejas evangélicas. “Ganhamos a delegacia, mas ficou um estigma de que foi criada só para o povo da macumba. Isso gera um desconforto. Até porque ela atua em casos de intolerância a qualquer religião”, lamenta Rafael Moreira.
Um dos casos solucionados pela Decrin foi o incêndio no Centro Espírita Auta de Souza, em Sobradinho 2, em 29 de janeiro do ano passado. O caso ocorreu uma semana após o GDF assinar um decreto para a criação da Decrin. No momento do ataque motivado por intolerância religiosa dos vizinhos, não havia ninguém no local. O prejuízo foi estimado em cerca de R$ 30 mil.
Segundo a denúncia do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), os cinco acusados planejaram o crime. Compraram gasolina e partiram para o ataque. Um deles subiu no telhado para espalhar o combustível e ateou fogo ao local. Não teve tempo de fugir. A estrutura caiu com o peso dele. Sobreviveu à queda, mas teve queimaduras. O grupo responde pelos crimes de discriminação religiosa, por provocar incêndio, e por terem agido em concurso de pessoas.
Promotora de Justiça do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação, Liz-Elainne Oliveira Mendes destaca crescimento nos ataques virtuais. Acreditando que a disseminação de ódio ficará no anonimato, muita gente comete crimes emitindo opiniões racistas e discriminatórias nas redes sociais. “As pessoas precisam entender que temos a liberdade de pensamento, mas isso não nos autoriza a abusar desse direito.”
Memória
2016
Março
Um templo de religião afrodescendente amanheceu destruído em Valparaíso.Vândalos derrubaram diversas paredes, quebraram imagens e pisotearam as plantas do local.
2015
Agosto
O babalorixá Babazinho de Oxalá, sacerdote de um terreiro em Santo Antônio do Descoberto, foi chamado às pressas por uma vizinha depois que o material usado nos rituais de candomblé foi destruído por vândalos. Portas e janelas foram arrombadas e vários objetos, roubados. Os prejuízos ficaram próximos de R$ 30 mil.
Setembro
Pelo menos dois templos de matriz africana foram incendiados durante a madrugada. Um dos casos ocorreu em Santo Antônio do Descoberto, mesmo endereço do ataque de agosto; e o outro, em Águas Lindas. No primeiro, o terreiro ficou destruído pelo fogo. Em Águas Lindas, criminosos invadiram o templo para atear fogo.
Análise da notícia
Medo do diferente
» GUILHERME GOULART
A criação de uma delegacia responsável pelo combate à intolerância diz muito sobre uma sociedade. Se há a necessidade de uma unidade especializada para a investigação de crimes praticados contra a cor, o sexo e a religião, por exemplo, é porque o preconceito se tornou um mal. No caso do Distrito Federal, são frequentes os episódios de racismo e de preconceito. No cinema, na manicure, nos terreiros, na rua e nas redes sociais, algumas situações se tornaram emblemáticas a ponto de estarem vivas na memória dos brasilienses.
Dessa forma, quanto mais vítimas vencem a humilhação e o constrangimento e denunciam esses casos à polícia, com mais clareza percebemos o medo do diferente. O machista, o preconceituoso e o racista nada mais são do que covardes. Escolhem a violência — verbal, física ou escrita — para destruir a autoestima alheia. É assim que se sentem superiores. Além disso, muitos desses ataques resultam em sequelas permanentes. Em casos extremos, levam à depressão e até à morte.
Por ser a capital do país, erguida por pessoas de todos os cantos do Brasil, o Distrito Federal deveria servir de exemplo para as demais unidades da Federação. Não é. Mas a existência de uma delegacia especializada mostra a preocupação em mudar esse cenário. E nada como uma investigação policial, uma condenação judicial e uma multa pesada para começar a transformar e a educar a sociedade.
Por: Correio Braziliense 14/2/2017 – CIDADES página 17