postado em 29/08/2016 06:10
Camila Costa
As mulheres acolhidas pela Casa Abrigo recebem aulas de bordado da marca brasiliense Apoena há cerca de dois meses: parceria de sucesso
Quando se começa um bordado em um pano em branco, uma ideia ronda a cabeça. Alguns planos estão prontos para serem desenhados ali. No meio do caminho, porém, algo pode dar errado e a trajetória fugir totalmente do que foi sonhado. Mas é possível recomeçar. Pegar agulha e linha e bordar uma nova história por cima da que não ficou legal. Em alguns casos, a construção é de um novo rumo de vida. Quem traça a analogia são dezenas de mulheres vítimas de violência no Distrito Federal. Acolhidas na Casa Abrigo, elas agora são motivadas por um projeto em parceria com a marca brasiliense Apoena. O fio da vida ganha mais força, mais cor e graça para deixar lá atrás a dor da violência.
O encontro entre os dois mundos — Apoena e Casa Abrigo — parece até obra do destino. A dona da marca, Kátia Ferreira, estava no Senado Federal para uma palestra do Dia da Mulher e alguns representantes da Casa Abrigo foram até lá para ver a programação. Ficaram encantados com a fala de Kátia e as histórias que ela contava, de pessoas que tinham mudado de vida após o bordado. Era exatamente de uma vida nova que muitas mulheres protegidas precisavam. Juntaram esforços e levaram a técnica para dentro da Casa Abrigo — uma professora, linhas, tecidos, lãs, agulhas, um mundo com mais alegria para recontar uma história bordada até agora com muito sofrimento.
Talita*, 27 anos, morou com o marido e os dois filhos, de 5 e 4 anos, por seis anos. Está há um mês no abrigo. O comportamento do companheiro sempre foi violento, mas, como na maioria dos casos, os episódios mudam de nível. No começo, um xingamento; depois, um murro e uma ameaça de morte, quando não, o homicídio. Com ela, não foi diferente. “Uma vez ele chegou na cozinha e eu estava no fogão. Ele deu um chute tão forte no fogão, que assustei. Não pegou em mim, mas perdi o bebê que esperava. Por muitas vezes, ele me obrigou a beber, fica bêbada. Outras vezes, me batia e, depois, fazia sexo comigo sem eu querer, trancava eu e os meninos em casa”, lembra.
O agressor está preso há pouco mais de 20 dias. Para esquecer um pouco tudo isso, Talita tem usado o bordado. Às vezes, deixa transparecer no tecido o que vem lá da alma. Um dos últimos desenhos é um autorretrato. Os olhos puxados revelam tristeza. “Quando eu sair da Casa, vou embora da cidade com meus filhos. Vou levar o bordado comigo porque gosto de artesanato e tem me ajudado demais. Agora, não penso mais nele (o marido)”, garante a vítima. Larissa*, 25, também não conseguiu deixar o bordado isento dos traumas da violência. “Eu falei: ‘professora, esse retrato tá muito angustiado, parecendo eu’. Ela me disse para bordar um sorriso. Eu fui mudando no pano, e foi mudando em mim também”, compara.
Larissa está em Brasília após fugir do primeiro relacionamento, marcado pela violência. Trouxe as duas filhas, de 3 e 7 anos. Na capital federal, um novo companheiro apareceu. “A gente foi morar junto, ele me prometia tudo, para mim e para as meninas. Mas, depois, se mostrou diferente. Tinha muito ciúme. Ele não me batia, mas batia nas minhas filhas. Comigo, era muita violência psicológica, acabava comigo, dizia que eu era feia, que não era ninguém, que não tinha nada. O jeito foi vir para a Casa Abrigo”, relata. E lá, está há um mês e meio. Um grande aliado: o bordado. “A gente chega aqui acabada. Aí, pegar esses panos lindos, dá vontade de ficar linda também.”
Fora da Casa
A maioria das mulheres vítimas de violência sofre com a dependência financeira. Os agressores são os provedores — fato que dificulta ainda mais a quebra do ciclo de violência. Levar a elas uma forma de independência e de autonomia financeira é fundamental, segundo a equipe pedagógica da Casa Abrigo. Nos dois meses de curso de bordado, algumas saíram do abrigo. Letícia*, 38, está há oito dias do lado de fora, após seis meses e 15 dias protegida. Foram 15 anos de casamento, três filhos e um histórico de drogas, ameaças e agressões.
O comércio que a família tinha, uma padaria, desfez-se em meio à confusão. Após as juras de morte, o acolhimento foi inevitável. E o bordado, hoje, é a principal fonte de renda fora do lar protetivo. Letícia, inclusive, conseguiu um trabalho extra para o fim do ano. “É tão emocionante isso. O bordado, quando a gente começa, quer logo ver o resultado final. Até minha filha mais velha está bordando. A menina escolheu imprimir a frase: “Respeitar para ser respeitada”.
Depois de correr do marido, que a perseguia com um facão para matá-la, Rafaela*, 24, foi com dois dos quatro filhos para a Casa Abrigo. “A gente já estava separado e ele ficava com os meninos nos fins de semana. Até que um dia não quis devolver. Quando fui buscar, ele me recebeu com um facão. Tive que fugir e fui direto para a delegacia”, conta Rafaela.
Segundo a vítima, após o desespero, vem a segurança com o acolhimento, mas a cabeça não para. Muita coisa para resolver, muita preocupação e poucas alternativas. O bordado ajudou na concentração, uma pausa para colocar a mente em ordem. “A gente começa a fazer, esquece das coisas. Vai esquecendo, esquecendo, quando vê, passou muito tempo. Quero continuar bordando e, quem sabe, pode virar uma fonte de renda, já que estou desempregada.”
Maria*, 40, começou devagar. Bordou o próprio rosto, outros desenhos, até chegar em um desenho de urso, um dos mais elogiados do grupo. Está há 15 dias fora da Casa Abrigo, lugar que a recebeu após o marido aprontar uma emboscada. Ele vendeu o carro e pagou um homem para matá-la. Com um pouco de esperteza e muita sorte, saiu ilesa. “Quando a gente borda, esquece a violência. Comecei isso meio louca, mas fui ganhando um norte. Além de terapia, é uma fonte de renda”, explica. Maria está com os três filhos, de 1, 5 e 12 anos, na casa de parentes em Brasília.
O projeto de bordado dentro da Casa Abrigo está no começo. Tem quase dois meses. Até agora, foi viabilizado com o esforço da Apoena — Instituto Proeza, que cedeu a professora e os insumos. Mas não será fácil continuar dessa forma. Principalmente para as mulheres que já estão fora da Casa. A ideia é abrir uma turma para as que deixaram o acolhimento. “Tá começando a ficar difícil. Precisamos montar uma estrutura melhor, fora da Casa, precisamos oferecer, pelo menos, uma cesta básica a elas ou uma bolsa e supri-las com os materiais necessários”, pondera a fundadora da Apoena. “É com o bordado que elas esvaziam a cabeça, fazem uma terapia. E tudo que aconteceu com elas é usado para preencher aquele pano. Se não ficar bom, recomeça”, diz Kátia.
Nomes fictícios por medida de segurança e em proteção às vítimas.
Exposição Apoena e Casa Abrigo
Será na Casa da Mulher Brasileira. Em 31 de agosto . A partir das 14h. *Todos os bordados serão vendidos e o dinheiro vai diretamente para a mulher artesã.